Povos, Tribos e o PROFETA
Quem diria, então, que Muhammad, coraixita, profeta dos árabes, não seria pensado como um “verdadeiro” árabe?!
No mais recente capítulo deste livro sem fim sobre o Oriente Médio e seus temas, publicado em 14/02/2025, eu fechei o texto com o seguinte trecho que discutia uma segunda parte de uma Sura do Alcorão com que tinha lidado na postagem anterior, de 08/02/2025. Eu tinha reproduzido os versículos, mas não tinha referenciado a Sura. Faço isso agora: trata-se da Sura 49, dita Dos Aposentos, e o versículo abaixo é o de número 14. Eu dizia então, finalizando, que:
“…por acaso, essa continuação vem a calhar para o meu argumento:
Os Beduínos (al a’rab) dizem: “Cremos"
Diga: "Vocês não creem, mas digam ‘nos entregamos’, mas a fé não entrou nos seus corações.”
Vejam que aqui entramos em contato com um novo vocábulo que poderia ser traduzido como “árabes”, ainda que por falta de opção: a palavra a’rab por vezes é usada de modo negativo àqueles árabes menos sofisticados, mais atrasados, mais ignorantes e, outras vezes, é usada para referir os nômades os beduínos. É claro que alguns podem fazer as duas coisas ao mesmo tempo, dependendo do julgamento que fazem dos beduínos.
Além dessa riqueza vocabular da língua árabe, evidenciada na Sura em questão, o versículo nos traz a prova de que o próprio Profeta encontrava dificuldade em convencer todos os árabes, todas as tribos, a se unirem a ele na fé sincera, genuína. No caso a referência é feita a um grupo de beduínos que teriam abraçado a religião apenas por conveniência…”
Eu tinha, até então, falado de árabes como um substantivo significando “nômades", tinha falado d’os árabes enquanto um povo, ou vários, com claros marcadores de identificação, tinha lembrado de quando dizia, e ouvia, por vezes, nós os árabes, e, outras vezes, eles os árabes. Tinha discutido das identidades clânicas e tribais e da sua importância entre os árabes. E tinha discutido as distinções, os binômios: “povos e tribos” e “nômades e assentados”.
Ao finalizar meu texto como o tinha feito, eu queria mostrar que a mesma Sura que nos dizia ter Deus criado a humanidade como uma multiplicidade de povos e tribos, para que se conhecessem uns aos outros, afirmava que alguns entre os nômades, entre os beduínos, ditos a’rab, tinham se convertido por mera conveniência.
Descobríamos ali que, do ponto de vista do Profeta e do seu primeiro auditório, era possível se referir de certo modo a “eles os árabes” usando um termo diferente, que constava do seu vocabulário, a’rab e que significava nômades ou beduínos. Salvo engano meu, é possível ouvir a expressão ainda hoje, em todo o Mundo Árabe, carregada de sentidos pejorativos. Descobríamos também que o Profeta pertencia a uma sociedade assentada, sedentária!
Ainda não chegou o tempo de falarmos em profundidade de Islã; ficaremos ainda por um tempo com os árabes e sua identidade e, como prometido, antes de chegarmos à religião revelada a Muhammad, passaremos pela língua.
Por isso mesmo, a referência ao Profeta hoje serve a que, tomando a sua figura por pivô, percebamos mais sobre os árabes, sobre sua organização em tribos e clãs, sobre a sua distribuição no território, instalados em cidades e oásis ou em contínuo movimento.
Meca
A cidade em que o Profeta nasceu era justamente isso, uma cidade. Não se tratava de um acampamento temporário e também não era um oásis. Era uma cidade que vivia do comércio e do fato de que, por ser depositária de vários ídolos e deuses das diversas tribos, recebia muitos peregrinos vindos de toda a península arábica.
Não sendo um oásis, ainda que, ao que parece, contasse com uma fonte de água, não podia explorar a agricultura e sua população precisava buscar suprimentos em cidades relativamente distantes. O que fazia a sua riqueza, no entanto, era a sua localização ideal nas rotas de comércio que ligavam o fértil Iêmen, no sul da península e, para além dele, a Índia, com o Levante e com os impérios Romano e Sassânida ao norte.
Coraix (Quraysh)
Como já aprendemos, o fato de muitos árabes terem se tornado sedentários não fazia com que abandonassem ou perdessem a identificação com os códigos tribais e clânicos. É verdade que alguns desses códigos, algumas das tradições, podiam se ver adaptados, modificados ou diluídos em contexto urbano.
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