Árabes, povos, tribos...
Oh humanidade, Nós os criamos de uma fêmea e de um macho, e fizemos de vocês povos e tribos para que conhecessem uns aos outros. O mais nobre entre vocês aos olhos de Deus é o mais piedoso.
No capítulo prévio deste livro sem fim sobre o Oriente Médio, falando dos árabes, disse de uma chave possível, necessária mesmo, para a compreensão do tema: a língua árabe. Disse, no entanto, que ainda não estava pronto para empreender essa discussão sofisticada, de que ainda sou um aprendiz. Ainda assim, farei aqui uma breve referência à língua e seus efeitos logo abaixo.
Disse também que a chave outra, que talvez funcione em sentido contrário, para pensar os árabes, era aquela de uma tendência duradoura, sempre ressurgente, para a divisão, para o conflito interno, para o dissenso. E disse que lidaria, de início com esta discussão. É o que continuo a fazer aqui.
Antes de seguir adiante, você pode achar interessante voltar aos textos anteriores. O mais recente será encontrado aqui:
Antes de falar de divisão e, de algum modo, de desesperança, conto sobre uma pequena experiência que diz respeito à língua árabe e seu poder…
Como muitos dos leitores devem saber, em junho de 2024 estive no Irã para discutir, ao lado de outros convidados, o papel do Direito Internacional no enfrentamento da tragédia palestina. Havia ali uma pessoa vinda de cada um dos seguintes países: Egito, Argélia, Tunísia, Síria, Palestina, Líbano, Jordânia, Uganda, Quênia, Zimbábue, Nigéria, Gana, Paquistão. Eu era a única pessoa das Américas.
Foi muito interessante observar, desde o primeiro dia, quase o primeiro instante, como os árabes, apesar de vindos de países diferentes, com políticas diversas, às vezes divergentes, e apesar de viverem realidades diferentes, pareceram formar um grupo homogêneo, marcado por uma solidariedade especial, um grupo de reconhecimento mútuo: todos eram irmanados em alguma medida, falavam com muito mais liberdade entre si, todos se diferenciavam dos anfitriões iranianos e também dos convidados não árabes.
É verdade que todos eram muçulmanos (quem conhece o mundo árabe, sabe que havia uma maioria sunita e uma minoria xiita), mas o milagre era operado pela via da língua, apesar dos diferentes sotaques e algumas escolhas específicas de vocabulário. Não digo que esse reconhecimento era devido à língua; acho que há algo mais profundo que leva os árabes a acreditarem nessa familiaridade, nessa identidade comum. Mas digo que sem a língua não seria possível expressar, vivenciar, essa identificação.
Eu, chegado do Brasil, fui imediatamente reconhecido como libanês, pelo nome e pelo fato conhecido de que, no Brasil, a maior parte dos descendentes de árabes é de origem libanesa. Esse reconhecimento, no entanto, não teria me levado mais longe se eu não pudesse trocar com eles em árabe corrente. Fui integrado, então, e tive durante todo o tempo acesso a um mundo próprio dos árabes daquele grupo, a um modo de olhar, de entender, de comentar, de criticar, de rir e de brincar. Tive acesso e participei porque, é preciso dizer, a língua chegou a mim ao longo de uma vida de convívio com esses modos de estar e de ser no mundo.
Vários dos nossos colegas da África, assim como aqueles do Paquistão, eram igualmente muçulmanos e é igualmente verdade que os muçulmanos tendem a se reconhecerem mutuamente e a se enxergarem como irmãos na religião, mas a falta da língua árabe criava uma divisória. Esta se deixava ver num estranhamento que alguém de vez em quando expressava ao perceber que se falava de Egito, Tunísia, Argélia, como se não fizessem parte da África!
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