O Profeta e os Clãs de Meca
Como os códigos tribais e clânicos influenciaram os primeiros tempos do Islã, resistiram à nova mensagem religiosa, marcaram a sucessão ao Profeta e o futuro dos muçulmanos...
No mais recente texto que publiquei aqui, chamado “O diálogo, as civilizações e o ser árabe no Brasil” (quem não o leu pode encontrá-lo aqui), eu dizia, mais para o final - de um texto razoavelmente longo - o seguinte:
“Se imaginarmos que, enquanto indivíduos, somo como o quartzo, ou seja, sim, temos algo em comum com a humanidade, já que o quartzo está em todo lugar, e por isso não somos necessariamente especiais, resta o fato de que cada um de nós está inserido numa formação específica e em torno dele há a camada de basalto e, em alguma medida essa camada chega a se infiltrar, a penetrar o coração do quartzo, ao mesmo tempo em que lhe serve de proteção e de envelope.
Eu por vezes penso a questão da identidade como esta tensão entre o que somos independentemente do entorno, aquela vontade de diferenciação, o quartzo tentando se proteger da invasão daquilo que o cerca, do basalto, com a percepção de que, ao mesmo tempo, sem a camada de proteção constituída pelo basalto, ele, quartzo, não seria quartzo, não seria nada.
Então, como seria possível definir a identidade individual cortando os laços com a camada protetora que na verdade ajuda a conformar os seus contornos e as suas feições? Há um equilíbrio necessário. Se a unidade se deixa invadir totalmente, perde a sua capacidade de diferenciação, tudo o que está dentro vira basalto e não há quartzo, se alguém é totalmente invadido pelo coletivo circundante ele não é nada senão a parte do coletivo, mas se não tiver a camada protetora também não se é nada. Esta tensão entre o indivíduo e o que o cerca é, para mim, a grande questão no que se refere à identidade.”
Eu fazia referência ao trabalho da artista Denise Milan, com pedras, e à imagem que ela invocara sobre o quartzo e o seu desenvolvimento enquanto coberto por uma camada de basalto.
Como mencionei quando da publicação do texto, ele dialoga também com a série sobre “Os Árabes” que está compondo o meu Livro sem fim sobre o Oriente Médio, cujo capítulo mais recente, “Povos, Tribos e o PROFETA”, vocês encontram aqui.
O trecho acima, especificamente, me parece fazer a conexão com o tema das tribos, dos clãs, das famílias e dos valores e costumes dos árabes. Em um desses capítulos anteriores, eu me referi à frase “eu e meu irmão contra meu primo; eu, meu irmão e meu primo contra o estrangeiro” para oferecer uma imagem que representasse com força os laços de solidariedade entre os membros das tribos e dos clãs, aquilo que Ibn Khaldun chamou de `assabyia.
O Coletivo
A imagem, e a discussão dela que eu incluí acima, tentam traduzir a problemática da identidade, especificamente árabe, do meu ponto de vista, enquanto alguém que a pensou e também a viveu. O drama fundamental se pode expressar assim: se não houver um coletivo - representado pela camada de basalto - que nos envolva e nos proteja, não temos como nos tornarmos nós mesmos - o quartzo individual -; ao mesmo tempo, no entanto, se não houver espaço para que o indivíduo se diferencie do coletivo que o circunda - se o basalto invadir o espaço em que ser formaria o quartzo - não há como diferenciar um do outro.
Estava claro no argumento que, entre os árabes, o coletivo pesa mais, talvez muito mais, do que nos parece ser o caso no Ocidente e na modernidade. Entre os árabes do tempo do Profeta, ainda muito mais.
Eu falava de identidade, mas agora adiciono outra dimensão da mesma imagem, talvez ainda mais apropriada para a aproximação com o tema de hoje, dos clãs e das tribos no tempo do Profeta. Essa outra dimensão sempre apareceu no meu discurso e no meu pensar como uma rede de segurança. Eu pensava na minha família estendida, no meu entorno e, em alguma medida, nos árabes e nos muçulmanos como constituindo uma rede que conteria a minha queda caso eu largasse o trapézio ou perdesse o equilíbrio na corda-bamba. E mais, constituíam uma proteção contra o estrangeiro e suas ameaças.
Bem, a herança do árabes antigos parece atravessar os séculos…
Por que digo tudo isso? Porque vejo essas dinâmicas operando fortemente na vida do Profeta do Islã, antes e depois da profecia, e continuando a operar depois da sua morte. E por que isso é especialmente interessante? É porque o Islã teria vindo, em princípio e segundo os relatos mais comuns, desfazer os códigos antigos e desfazer as diferenças entre os seres humanos, reconhecendo apenas o maior ou menor crédito dos indivíduos segundo a sua fé e a sua conduta.
Os Clãs de Meca
A esta altura já sabemos que a tribo de Coraix (Quraysh) era predominante em Meca, ainda que houvesse ali comunidades e indivíduos pertencentes a outras tribos.
Assim, quando se fala dos diversos clãs da cidade, e da distribuição de tarefas e de poder entre eles, a referência é feita a famílias, clãs, descendentes de um mesmo antepassado com quem teria se iniciado Coraix. Fala-se portanto dos diversos clãs coraixitas.
Fazendo a reserva de que a lista dos clãs sofre alguma variação segundo a fonte, digo que há razoável consenso sobre os que seriam os principais e sobre a sua relativa importância. Ao mencioná-los, faço a opção de usar um mesmo termo comum a todos, banu, que significa essencialmente filhos ou descendentes.
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