Coelhos, Leões e Tempestades: Fábulas da Geopolítica
Os israelenses estavam, com palavras e símbolos, convidando os iranianos contrários ao regime islâmico a se erguerem eles também contra o seu governo e colaborassem no objetivo de mudança de regime
Eu gosto de leões! Desde que estejam a uma distância segura, é claro. Para observá-los de perto, seria necessária a intervenção de grades… e um leão prisioneiro não é bem o leão de que gosto. Pode-se chegar perto, muito perto, em foto e filme, mas é certo que algo se perde… fica-se com o recorte estético e não se tem acesso à crueza e à força de um leão presente na natureza… Enfim, gosto de leões.
Talvez seja, em parte, por razões astrológicas (sim, sou, aqui e ali, acusado de entreter pensamentos mágicos… mas você não precisa se preocupar: eu não tento passá-los pra frente ou vendê-los a quem quer que seja…). Como bom leonino, parece apenas apropriado que eu goste daquele que é dito o “rei dos animais”, associado ao sol e às qualidades de nobreza e honra.
Também gosto de fábulas, de provérbios, de parábolas. Talvez se pudesse explicar isso como uma preferência pessoal, acidental, como qualquer outra preferência… Mas gosto de pensar que deve haver algo de mais profundo: a tradição dos árabes de contar histórias; uma pequena linhagem familiar de bons contadores de causos e decoradores de fábulas e provérbios; quem sabe até as raízes cravadas numa região do mundo em que as histórias exemplares vieram habitar os textos sagrados do monoteísmo. Enfim, gosto de fábulas…, e elas estão cheias de leões
E eu gosto de palavras; gosto, como era também o caso do Chacal Mergulhador, personagem do livro “O Leão e o Chacal Mergulhador1”, ‘de mergulhar nos sentidos sutis’ das palavras; e gosto do que se faz com as palavras.
Por tudo isso, quando soube que Israel havia nomeado a sua operação militar, o seu ataque, contra o Irã, como “O Leão ascendente”, senti que precisava investigar…
Antes de qualquer outra coisa é preciso dizer que, obviamente, o nome não foi dado em português e quando eu digo ‘Leão ascendente’, estou buscando a melhor tradução para o que vi, em inglês, como 'Rising Lion’ e, em árabe, como ‘Al Assad Al Sa’ed’. Assim que cheguei à fórmula em português, senti que ela não carregava a mesma força que tinham as outras duas; o ascendente não evoca do mesmo modo um leão que se levanta, que se ergue, como quem se prepara para o ataque…
Descobri depois que, em hebraico, o nome dado era ‘Am KeLavi’, que poderia ser melhor traduzido como ‘Uma nação como um leão’, e que transmitiria a ideia de uma nação que se ergue como um leão. Não seria estranho que os israelenses tivessem escolhido um nome com sonoridade e sentido mais apropriados para o publico doméstico, e um outro mais claramente compreendido pelo resto do mundo.
Mas o que queriam dizer com aquelas palavras e com aquele nome?
Fico sabendo que é uma referência direta ao texto bíblico que, em Números 23:24, diz algo como ‘Eis que o povo (ou a nação) se levanta como uma leoa e se ergue como um leão'. O povo, ou a nação, é aquele de Israel do Antigo Testamento. A escolha do nome nos diz que o Israel de hoje realiza a profecia e a promessa contidas na Bíblia e se ergue contra os inimigos com a certeza da vitória divina.
Até aí, nada de muito estranho. Ainda que, sim, coubesse uma discussão sobre a insistência de um país que insiste em se dizer democrático, liberal, diverso, aberto, em se reconhecer em símbolos que dizem do exclusivismo do privilégio dos israelitas do Antigo Testamento, um privilégio que o Israel de hoje teria herdado por via de linhagem genética apenas… Veja-se que a operação que agora está em curso contra Gaza também pretende carregar simbolismo bíblico: ‘As carruagens de Gideão’ é o nome que combina a palavra para os tanques israelenses (merkava) e o personagem bíblico que teria derrotado os Midianitas…
Mas logo se descobre que os próprios israelenses escolheram o nome ‘Leão ascendente’ tendo em mente um segundo sentido que não o bíblico ou aquele especificamente voltado ao público israelense. O nome queria fazer referência também ao leão que antes ocupava o centro da bandeira do Irã na época do Xá, ou seja, antes da Revolução Islâmica, e por trás do qual emergia ou ascendia um sol. Os israelenses estavam, com palavras e símbolos, convidando os iranianos contrários ao regime islâmico (que na imaginação israelense, americana e ocidental constituem a ampla maioria da população) a se erguerem eles também contra o seu governo e colaborassem com Israel no objetivo de mudança de regime.
Propunha-se aos iranianos que abandonassem o símbolo que hoje figura na bandeira nacional, um ‘Allah’ estilizado na escrita árabe e persa, o símbolo do caráter islâmico da Revolução e do sistema político hoje vigente, e voltassem ao leão, enquanto símbolo persa antigo e monárquico do poder, combinado com o sol, identificado como Mitra, uma divindade da era pré-zoroastrismo. Propunha-se que quisessem retornar aos tempos da dinastia Pahlevi, que dizia de si mesma ter mais de mil anos, e que quisessem elevar à condição de Xá um boneco dos americanos e dos israelenses, filho daquele que antes tinha sido boneco e que foi derrubado pela Revolução.
Não parece ter funcionado muito bem…
Inevitavelmente, enquanto pensava o nome da operação e seus sentidos, seus propósitos, enquanto pensava este texto e também enquanto acompanhava os eventos dos doze dias já passados que durou a operação israelense, complementada ao final com ataques americanos contra o Irã, ocorreram-me outras imagens e estórias com leões. Sobre duas delas, já falei e escrevi em outras ocasiões; porque são especialmente relevantes aqui, escrevo novamente (afinal, alguém já imaginou o que seria das fábulas, dos provérbios e das parábolas se só fossem contados uma única vez?!).
A primeira é uma anedota que não tem a imponência das fábulas clássicas e mais antigas, mas que faz sucesso nos meios acadêmicos: diz de um coelho que tem uma tese, a de que os coelhos são os verdadeiros predadores de raposas e lobos; quando encontra uma raposa que está prestes a atacá-lo, devorando-o, pede que ela faça uma pausa para escutar a sua tese; como ela se mostra cética, convida-a a ir com ele para uma toca onde ela será ruidosamente estraçalhada e de onde o coelho sai incólume; quando encontra um lobo também prestes a devorá-lo, apresenta a mesma tese e repete o convite; também o lobo é despedaçado e o coelho segue ileso. Descobre-se então que, na toca estava o leão a quem o coelho conduzia raposas e lobos para serem destruídos e devorados. Em círculos acadêmicos, a natureza da mensagem era facilmente compreendida: você pode defender a tese que quiser, por mais absurda que seja, desde que tenha um orientador com poder suficiente.
Eu já usei a imagem para representar a relação entre Israel e Estados Unidos. Israel, há muito tempo, parece tudo poder no cenário internacional, na sua relação com os palestinos e outros povos do Oriente Médio, na sua interação com organismos internacionais e com o próprio direito internacional, na sua relação até mesmo com a sociedade estadunidense por ter garantido para si o apoio incondicional dos governos e das instituições do Estado mais poderoso do mundo.
No que diz respeito aos ataques contra o Irã a que Israel resolveu chamar de Leão ascendente, o paralelo com a estória do coelho e do leão é ainda mais perfeito: não tendo dado conta de abater sozinho o Irã ou levá-lo à mudança de regime, Israel precisou literalmente recorrer ao poder militar de seu padrinho para que este atacasse diretamente o adversário
Não funcionou; às vezes, raposas e lobos escapam com vida…
E, justamente, a segunda parábola a que quero me referir aqui, mais uma vez, ajuda a explicar por que a tese israelense não funcionou desta vez, a despeito do apoio que recebeu de seu padrinho de sempre.
Até aqui, o leão aparecia como o símbolo do poder ou como o personagem que encarna a maior potência. Nesta nova parábola dá-se um pouco o contrário, ainda que não inteiramente.
A imagem a que me refiro encontra-se em uma carta inventada, que é lida na parte final de um filme inspirado em fatos reais, mas que toma, em relação à realidade, liberdades importantes. O nome do filme, ‘O Vento e o Leão', decorre da oposição estabelecida na carta. Quem escreve é Raisuli, um árabe do deserto, e o destinatário é Roosevelt, o presidente dos Estados Unidos. Raisuli diz:
Você é como o vento e eu como o leão. Você forma a tempestade. A areia faz arder meus olhos e o chão está ressecado. Eu o desafio com o meu rugido mas você não ouve. Mas entre nós há uma diferença. Eu, como o leão, devo ficar em meu lugar. Enquanto você, como o vento, nunca saberá o seu.
Percebe-se com clareza o menor poder do leão frente ao vento capaz de semear tempestades e tudo arrastar consigo. O vento não liga para o rugido do leão e o cega temporariamente, enquanto faz o seu caminho de destruição.
No entanto, o menor pode do leão tem também a sua limitação: enquanto o vento não deixar de ser apensa tempestade e não vier se substituir ao leão na relação que este entretém com a terra, o leão não estará derrotado. O poder do vento tem o seu reverso no fato de que ele não conhece o seu lugar
Pois bem, o Irã é um pouco como o leão, ele conhece o seu lugar e deve ficar ali. Mas ele é mais, porque ele é o próprio lugar, a própria terra, a própria areia e o próprio chão que o vento levanta. Nada pode tirá-lo dali. O mesmo se pode dizer dos palestinos, enquanto eles heroicamente resistem a terem suas raízes arrancadas da sua terra.
Já Israel é parte do vento, é parte da tempestade que o vento vem alimentando no Oriente Médio há décadas. Por mais que se busque fundar na narrativa bíblica, e mesmo na história real de uma relação entre os judeus e a Palestina histórica, para a legitimidade da presença de Israel na região, está claro que esse projeto de segregação, de limpeza étnica, de genocídio, de colonização não pertence à terra e não tem com ela uma relação genuína. A tempestade pode durar e pode destruir, mas não pode permanecer. Ela vai passar.
Livro publicado no Brasil por Mamede Jarouche
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A tempestade pode durar e pode destruir mas não pode permanecer. Ela vai passar” 👏🏻👏🏻🙏🏻