"Violência Sagrada: Os Versículos dos Outros"
"E combatei, no caminho de Deus, os que vos combatem, e não cometais agressão. Pois Deus não ama os agressores."
Tive notícia recentemente de uma pesquisa, cujos resultados foram publicados no jornal israelense Haaretz (apenas em hebraico, o que já revela implicações importantes), revelando que 47% dos judeus israelenses são favoráveis a que o Exército faça com os palestinos o que teriam feito Josué e os israelitas bíblicos em Jericó, matando todos os habitantes de uma cidade conquistada, e que 60% desses mesmos judeus israelenses acreditam que ainda hoje se aplicaria o mandamento bíblico de apagar Amalec (o inimigo bíblico que hoje estaria encarnado nos palestinos).
Além dessa alta aceitação da ideia de um genocídio dos palestinos, a pesquisa revela também que 82% dos judeus israelenses apoiam a expulsão forçada dos palestinos de Gaza e 56% apoiam a expulsão forçada de seus próprios concidadãos israelenses árabes, que constituem 20% da população total do país!
Talvez se deva tirar conforto do fato de que a aprovação do genocídio é um pouco menor do que a da limpeza étnica… ainda que, na realidade concreta do momento, os dois crimes estejam sendo cometidos concomitantemente e se confundam um com o outro.
Eu publiquei um vídeo comentando os resultados da pesquisa e deixo um link aqui para o mesmo.
Chamou-me à atenção a referência bíblica, e voltou-me à memória um texto que escrevi em 2016 e que havia entitulado "Versículos e Violência".
Nele, eu fazia um relato breve sobre uma experiência que retomo agora e desenvolvo um pouco mais.
Na academia, chegou-me aos ouvidos uma conversa entre dois colegas, ou melhor, um monólogo, já que aquele que falava era dessas pessoas que têm sempre muito a dizer e que os outros têm dificuldade para interromper.
O contexto aqui é importante: você não deve imaginar a academia como aquele lugar vibrante, jovem, em que a música é alta e animada, em que os belos espécimes de todos os gêneros flertam entre si no espelho e com os demais enquanto transformam abdominais em tanquinhos… A academia em questão era frequentada sobretudo por pessoas que precisavam de musculação para viver um pouco melhor, por mais tempo. A idade média era alta, ainda que reduzida pela presença dos instrutores.
Assim, a pessoa que eu ouço falar era um desses senhores que pensam saber muito sobre tudo e que dificilmente se poderia classificar como um progressista. Ele diz: você sabe, eu fui pegar o Alcorão... queria conferir, sabe, esse negócio que o pessoal diz... e eu vi lá, o versículo 191 manda mesmo matar, diz que matar é melhor do que subjugar...
Eu lembrava que, coincidência ou não, o versículo 191 da Sura da Vaca é um dos preferidos daqueles que nos tentam convencer de que a violência está inscrita no DNA do Islã e é um comando expresso de seu livro sagrado.
Eu pensei**,** à época**,** que provavelmente ninguém se tinha preocupado em alertar esse falante, e que ele mesmo não se preocupara em se instruir, sobre o que diz o versículo 190 ou o 192 da mesma Sura, sobre o que está dito em outros versículos de outras suras, sobre os problemas de tradução (ou, como dizem os muçulmanos, de versão dos sentidos do texto corânico, já que, sendo sagrado, não seria passível de tradução) ou sobre a enorme complexidade do exercício de exegese do Corão.
Sim, talvez fosse pedir muito… Resta o fato, no entanto, de que esse falante se permite fazer algo com o Corão que não ousaria fazer com a Bíblia. Não digo que ele necessariamente faria leitura mais profunda e interpretações muito mais sofisticadas do texto bíblico, mas digo apenas que não se permitiria (ou é apenas ilusão minha**?**) confiar que encontraria o sentido do texto na sua literalidade.
É claro que uma razão para isso, para essa diferenciação, pode ser encontrada na crença de que, de algum modo, a Bíblia seja um texto sagrado, e de que o Corão seria apenas uma produção humana e, nesse sentido, uma farsa religiosa.
Não se trataria de alguém que só enxergaria a violência no Corão por nunca ter tido qualquer contato com o Velho Testamento, por exemplo.
A literalidade e a interpretação rasa são reservadas para o Alcorão, o outro, um total desconhecido. O que é nosso é mais profundo! O outro é texto, invenção**;** o nosso é sentido, verdade revelada! O mito do outro é fantasia ridícula**;** o nosso mito é milagre!
Já eu sempre coloquei os textos sagrados dos três monoteísmos no mesmo plano. Uma primeira e boa razão para isso é que, crescendo entre muçulmanos, vivia-se com a "verdade" das revelações do mesmo Deus único anteriores e da profecia de que estariam investidos Abraão, Moisés, Cristo… E, quando jovem, eu fazia o mesmo tipo de leitura**,** "textual", que fez meu colega falante. Na verdade, em contato com as escrituras dos três monoteísmos, surpreendia-me que as pessoas não destroçassem aqueles livros tão logo os tivessem lido**,** as mulheres antes de todos os demais.
(Sinto aqui a tentação de desenvolver a discussão sobre como me relaciono**,** hoje**,** com os monoteísmos e seus textos, mas deixo para um momento futuro**.)
Continuava, então, o monólogo do meu colega: "Na época, ele (Muhamad) disse que era profeta e o pessoal por lá acreditou**;** se fosse hoje**,** a gente internava, mandava para uma clínica…"
E, mais uma vez, é interessante que não se tenha perguntado no mesmo fôlego o que seria de Jesus ou de Moisés se por aqui ousassem aparecer, ressuscitando mortos e transformando cajados em cobras…
Dostoiévski (para não dizer que não falei dele) concebeu na Parábola do Grande Inquisidor a volta do Cristo à Sevilha da Inquisição**,** onde seria posto sob ferros para que não tentasse novamente impor aos homens o fardo insuportável da liberdade.
Já não vivemos em tempos de Inquisição, mas não sei o que é possível dizer sobre a servidão... talvez reservássemos ainda hoje ao Cristo as correntes.
De todo modo, o imaginário de alguns reserva o manicômio apenas para os eventuais e extemporâneos falsos profetas. Não para os seus.
Eu sei que os literalistas e os exegetas da violência no mundo muçulmano fazem certamente mais mal ao Islã e ao mundo do que o literalista e exegeta da pequena dimensão que me coube ouvir por acidente.
Resta o fato de que entre nós o Islã é um grande desconhecido**;** e alguns versículos baixados da internet não são o que basta para mudar isso.
E, para total transparência, e como convite para debates futuros, seguem os versículos relevantes para o debate, tirados da Sura da Vaca (Sura 2 do Corão)1:
190 E combatei, no caminho de Deus, os que vos combatem, e não cometais agressão. Pois Deus não ama os agressores.
191 E matai-os onde que que os acheis, e fazei-os sair de onde vos fizeram sair. A sedição é pior do que a morte….
192 E, se eles se abstiverem (de atacar), então Deus perdoa e é misericordioso.
193 E combatei-os até que não haja mais sedição e que a religião seja de Deus. Então, se eles se abstiverem, nada de agressão, exceto contra os injustos.
uso a tradução do sentido feita pelo Professor Helmi Nasr, com alterações feitas por mim…
Junte-se ao Professor Salém Nasser e mergulhe em um universo de informações essenciais e análises perspicazes. Uma experiência verdadeiramente enriquecedora!
Professor Salem, lendo este texto a gente entende bem o que quer dizer a cegueira seletiva, e em certas ocasiões é muito difícil e complexo.