Alma da Alma e o mundo visto de cima
Eu gosto da majestade da coisa. É uma lição de humildade: nós nem aparecemos na foto e mesmo assim acreditamos que tudo foi feito para nós
Sempre preferi olhar o mundo de cima, ou melhor, sempre preferi as imagens que retratavam o mundo à distância, ou seja, desde o alto, talvez até desde fora do mundo.
Eu gosto da majestade da coisa. É uma lição de humildade: nós nem aparecemos na foto e mesmo assim acreditamos que tudo foi feito para nós… Sou atraído pela imensidade das massas de água e de terra, das montanhas e dos rios, das florestas; gosto da variedade de cores e formas. Mesmo quando se olha para as coisas e lugares feitos pelo homem, ainda fico admirado. Se a cidade foi planejada, fico impressionado com a geometria; se não foi, fico curioso para descobrir como foi que as coisas se tornaram o que são. Em todo caso, é como olhar para um formigueiro tendo acesso às suas estruturas, vias, entradas e saídas.
Mas, devo ser honesto: pode bem ser que o que eu mais goste nessas imagens é o que não vejo nelas - e o que não sinto. Aquele oceano, aquele rio, aquela bela montanha branca, aquela floresta sem fim, com tudo isso eu posso ficar maravilhado sem estar no meio do oceano e sem temer os milhares de metros de profundidade e o número ilimitado de espécies vivas, perigosas ou não; sem me encontrar no frio mortal da montanha coberta de branco; sem estar perdido na massa verde da floresta, sentindo a umidade, ouvindo os sons, temendo cada coisa viva….
Todas essas experiencias seriam lições de humildade também, mas mais assustadoras.
Posso dizer algo parecido quando se trata do lugares feitos pelo homem ou tocados por ele: aquela bela praia vista de cima esconde de nós os odores da poluição e a vista do lixo; de cima, não vemos - ou vemos menos - a pobreza, a sua violência, não vemos os edifícios e as casas decadentes…
Não quero multiplicar indefinidamente os exemplos. O que disse já basta para pintar o quadro que faz de mim alguém que prefere o ideal ao real e para quem o concreto da vida humana é, em muitas coisas, não em tudo, duro demais, injusto demais, sujo demais.
Essa pode ser uma das razões pelas quais, quando eu falo ou escrevo sobre qualquer tema, entre eles o Oriente Médio e a Palestina, tendo a procurar pelo que as pessoas chamam de grande quadro, ou o grande panorama. Não é a única razão, eu sei disso: o quadro maior tende a explicar mais e eu quero explicações tão completas quanto possam ser.
Um primo querido que tenho me diz todo o tempo, especialmente quando estamos no meio de uma discussão coletiva de algum tema complexo, que eu me comporto um pouco como uma águia: passo um tempo observando, escutando, como quem olha desde cima, e logo, de repente, tendo visto algo relevante, eu mergulho e falo. Eu penso nisso como uma bela imagem, que deve mais à generosidade dele do que à realidade…
Mas há, de todo modo, uma diferença entre mergulhar e ser derrubado.
Às vezes, enquanto estou satisfeito com os meus voos inteligentes, com meus esforços para juntar as peças de informações em um todo coerente, com a minha certeza de que é tudo parte de uma mesma História, fascinante, da humanidade, uma garra poderosa e desprovida de piedade me agarra pelo pescoço e me traz para baixo até esfregar a minha cara na feiura do mundo.
Isso aconteceu estes dias. Um pai carregava nos braços a sua criança sem vida; ao mesmo tempo, enquanto tentava lhe abrir um dos olhos, ele a chamava e também a apresentava a quem estivesse escutando, a todos nós: “alma da alma”, ele dizia, “alma da alma”. Assim mesmo, sem exclamação, sem levantar muito a voz, apenas contando, como quem ainda não acredita, que a alma da sua alma já não existia.
Sim, é um mundo de poesia também: somos então capazes de conceber uma frase assim, simples, mas total e absoluta, que diz tudo, “alma da alma”. Lindo. Mas é também um mundo que mata, com grande facilidade, muitas almas de almas
.
Que mundo é esse que não só mata a "alma da alma", mas mata a nossa humanidade quando assistimos impotentes a morte de muitas almas na Palestina.
É comovente quando alguém nos revela a alma, com humildade e gentileza, gratidão!