A Imolação de Gaza
Não se espera que os pais de fato ofereçam seus filhos imolados para que uns e outros estejam mais perto de Deus! Mas em Gaza não parece haver alternativa
Um pai grita “sacrifiquem, oh árabes!…". Ele tem as mão sujas, de terra e de sangue. Com elas puxa em desespero a gola da própria camiseta como se a fosse arrancar. Logo, faz com as mesmas mãos os gestos de quem corta algo, a direita indo e vindo sobre o pulso da esquerda, e diz “abatam! abatam ovelhas e bezerros! e comam carne, oh árabes! Puxando o cobertor manchado de sangue que cobre o corpo de seu filho morto, diz “nós sacrificamos nossas crianças!” Derruba o cobertor e se inclina sobre o corpo, e repete “Deus me basta, e que excelente protetor [Ele é]!”, “Deus me basta, e que excelente protetor [Ele é]!”… A câmera nos mostra então cinco outros cobertores que grosseiramente tomam a forma dos corpos que cobrem, são multicoloridos, de baixa qualidade, e os mais claros deixam ver mais claramente os sangue que absorveram.
Essas crianças foram abatidas enquanto se refugiavam num hospital, no dia em que os muçulmanos iniciavam o primeiro dia da sua maior festividade religiosa, o “Eid El-Adha”, normalmente traduzido como “Festa do Sacrifício”, cujo nome em árabe remete à noção de uma festividade que retorna (todos os anos) e em que se dá uma imolação em sacrifício e em oferenda.
Para quem faz a peregrinação a Meca, uma das obrigações de todos os muçulmanos, o sacrifício integra o rol de rituais do Hajj (peregrinação). E, no mesmo dia, em todos os cantos do mundo, os muçulmanos sacrificam animais, festejam e distribuem presentes e comida. Diz-se que a carne deve ser assim distribuída: um terço para a família, um terço para as pessoas próximas e um terço para os necessitados. Muitos substituem o abate de animais por doações em dinheiro ou em comida.
As crianças são normalmente as mais animadas; vestem suas melhores roupas e esperam dos adultos presentes, brinquedos ou dinheiro ou doces.
Como acontece no Natal e no Ano Novo, as pessoas trocam mensagens, cartões, vídeos e memes contendo votos de um Eid Abençoado, de que ele se repita ainda por muitos anos, de que estejamos com saúde quando ele voltar…
Este ano recebi menos mensagens desse tipo; a maioria veio de instituições que, certamente, mandam disparos automáticos. Eu mesmo não mandei nenhum, até agora, quando o tempo já passou. Sinto que não tenho o que dizer, aos muçulmanos e aos não-muçulmanos, em celebração ou em comemoração.
A festividade remete a uma versão islâmica do sacrifício de Abrahão; para os muçulmanos, o filho que deveria ser sacrificado era Ismael, o primogênito, e este, na sua primeira adolescência, é consultado pelo pai a respeito do sonho que tivera e em que recebera o comando de o sacrificar. Ismael diz que seu pai deve fazer o que lhe foi ordenado. Ele aceita de bom grado servir de oferenda. A fé de pai e filho estando provada, ambos são salvos pela vontade divina.
Uma palavra do árabe que designa a um tempo o ato de sacrificar e o ser ou coisa sacrificada é Qurban (ela tem seus equivalentes quase idênticos no hebraico e no aramaico). A sua raiz remete à ideia de proximidade, de estar junto a…
Entende-se que o sacrifício é feito para nos aproximar de Deus. A celebração alegre festeja essa proximidade, mas a proximidade decorre da generosidade com que se olha para os outros e se atende a suas necessidades. É essa generosidade, essa solidariedade, que salva a todos.
Não se espera que os pais de fato ofereçam seus filhos imolados para que uns e outros estejam mais perto de Deus! Mas em Gaza não parece haver alternativa: os pais oferecem os filhos, aos milhares; os filhos oferecem os pais…
O pai que incitava os árabes a abaterem ovelhas e bezerros e a comerem carne (o nome dele é Rami…) nos diz que ele acabou de sacrificar o que tinha e nos lembra, especialmente aos árabes e aos muçulmanos, que nem ele nem nós temos o que comemorar, e que nós falhamos em nos aproximarmos de Deus porque não socorremos quem tinha fome e os milhares de cordeiros humanos imolados em Gaza.
Ele, Rami, não se esquece de Deus e repete “Deus me basta, e que excelente protetor ele é!” Esse é um versículo do Corão, sempre lembrado quando uma tragédia se abate sobre os muçulmanos, nos momentos de maior desespero. Na terceira Sura do Corão, chamada “‘Imran ou A Família de ‘Imran” (significando a família do pai da Virgem Maria), se lê:
E quanto àqueles que atenderam o chamado de Deus e de seu Mensageiro, após as feridas que os afligiram, e àqueles que entre eles fizeram o bem e temeram Deus, a sua recompensa será gloriosa. Esses são os homens a quem as pessoas disseram: ‘Uma poderosa hoste foi mobilizada contra vocês; então vocês deveriam temer.’ Mas isto só aumentou a sua fé e eles responderam: ‘Deus nos basta, e que excelente protetor Ele é’
Olá!
Desde manhã que a Palestina, Gaza e a Cisjordânia estão comigo, muitas notícias sobre a repressão bárbara e sanguinária de Israel, sobre quem se aproxima para ajudar e para dizer ao mundo que a gente sabe
que o sionismo é feito dum bando de assassinos! Mas os israelitas vão a todo o lado com o seu ódio! Querem mandar em tudo e todos, até no mar que é nosso, meu, seu, de todos nós! Até têm a arrogância de castigar ou apoiar o que sentimos!
É consolador ver que mais olhos se abrem e veem finalmente a Palestina ferida, com fome, com mortos- assassinados a pavimentar-lhes a terra-mãe, e saber que há lutas de trabalhadores, como os estivadores franceses, (ou ingleses?), que se recusaram a carregar navios com materiais destinados a Israel, como que a dizer !NÃO, NÃO PARTILHAMOS COM NAZISIONISTAS A NOSSA FORÇA DE TRABALHO!
0 mundo está a acordar, muito tarde já, mas é melhor que acorde e grite! Que grite!
Basta de bocejos e até de lágrimas. As nossas lágrimas só seriam úteis se virassem balas ao cair dos olhos. E balas bem apontadas pelos melhores dos snipers.
Mas como não chorar, com ou sem lágrimas, quando Rami não tem alternativa e acha por bem oferecer seus filhos imolados, (de facto por todos nós assassinados), para que fiquem mais perto de Deus! Em Gaza os pais oferecem os filhos, aos milhares; os filhos oferecem a pais...
Mas Rami sabe que eu, que o Salem, que todos nós falhámos, porque não socorremos quem tinha fome nem os milhares de cordeiros humanos imolados em Gaza.
E Deus está longe de mim.
Não está para mim.
E como eu gostava de acreditar. Seria o ombro que não tenho e olhar com confiança plena não sei bem o quê, mas que só de olhar me fizesse bem, como uma onda branda...do mediterrâneo, de mão dada com um menino de Gaza.
Forte abraço para si, Salem Nasser.
Alice Telles
Portugal, 11/06/2025-19:36h (GMT)
Que mundo pavoroso. O que se tem para comemorar?
Comemorar e agradecer a existência de alguns heróis que prejudicam suas próprias vidas para denunciar a barbárie.
Muitos são judeus, que são perseguidos e suas carreiras prejudicadas por causa da sua denúncia.
Alguns estudantes que também são lesados por mostrar a tragédia dos palestinos.
Os ativistas da flotilha da liberdade.
Esses fachos de luz iluminam as trevas e mostram o horror que se faz com os palestinos.